O PL em questão modifica artigos do Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de Dezembro de 1940, tornando crime, equivalente ao homicídio, toda situação de interrupção da gestação a partir de 22 semanas, até nos casos previstos em lei (em caso de estupro e para salvar a vida da mãe):
"Art.2º O art.124 do Decreto-lei n.º 2.848, de 7 de dezembro de 1940- Código Penal, passa a vigorar acrescido dos seguintes parágrafos: "Art. 124 - Provocar aborto em si mesma ou consentir que outrem lho provoque: ...........................................................................................”
“§ 1 Quando houver viabilidade fetal, presumida em gestações acima de 22 semanas, as penas serão aplicadas conforme o delito de homicídio simples previsto no art. 121 deste Código”.
“§ 2 O juiz poderá mitigar a pena, conforme o exigirem as circunstâncias individuais de cada caso, ou poderá até mesmo deixar de aplicá-la, se as consequências da infração atingirem o próprio agente de forma tão grave que a sanção penal se torne desnecessária.”
Art. 3º O art.125 do Decreto-lei n.º 2.848, de 7 de dezembro de 1940- Código Penal, passa a vigorar acrescido do seguinte parágrafo único:
"Art. 125 - Provocar aborto, sem o consentimento da gestante: ........................................................................................” Parágrafo único. Quando houver viabilidade fetal, presumida gestações acima de 22 semanas, as penas serão aplicadas conforme o delito de homicídio simples previsto no art. 121 deste Código”.
Art. 4º Renumere-se o parágrafo único do art.126 do Decreto-lei n.º 2.848, de 7 de dezembro de 1940 - Código Penal, como parágrafo primeiro e acrescente-se o seguinte parágrafo segundo: "Art. 126 ..............................................................”. “§ 1º …...................................................................”
“§ 2º Quando houver viabilidade fetal, presumida em gestações acima de 22 semanas, as penas serão aplicadas conforme o delito de homicídio simples previsto no art. 121 deste Código”.
Art. 5º O art.128 do Decreto-lei n.º 2.848, de 7 de dezembro de 1940 - Código Penal, passa a vigorar acrescido do seguinte parágrafo único: "Art. 128 - Não se pune o aborto praticado por médico: ...................................................................... ............” “Parágrafo único. Se a gravidez resulta de estupro e houver viabilidade fetal, presumida em gestações acima de 22 semanas, não se aplicará a excludente de punibilidade prevista neste artigo. ”
O que me chamou a atenção na redação foi a expressão "VIABILIDADE FETAL, PRESUMIDA", repetida exaustivamente. Por que? Porque, na prática cotidiana, ela irá fazer com que qualquer óbito fetal a partir de 22 semanas se torne um homicídio em potencial. E em se tratando de um crime presumido, haverá a necessidade de se desencadear uma investigação policial para que se determine a tal “viabilidade fetal”, com todas as implicações, para a gestante/parturiente, independente de seus sentimentos em relação à gravidez, e também à equipe de saúde que participou do atendimento, incluídos os médicos.
Outra consequência na prática cotidiana será que, qualquer situação de alto risco na qual haja necessidade de interromper uma gestação com uma cesariana de emergência, a exemplo de ruptura prematura de membranas, descolamento prematuro de placenta, pré-eclâmpsia ou eclâmpsia, cardiopatia grave da mãe, dentre outras situações graves, se houver morte do produto da concepção, mesmo que a mesma ocorra após o nascimento, em uma UTI neonatal, haverá a necessidade do desencadeamento de uma investigação policial e um processo penal. Médicos, enfermagem e demais membros da equipe de saúde, nesses casos, serão envolvidos em investigação policial, poderão ser denunciados pelo Ministério Público e sofrer um processo criminal. Consequentemente precisarão contratar advogados para se defender, correndo o risco de uma condenação, além de sofrer processos administrativos disciplinares e sindicâncias no serviço público, afastamento das funções e demissões. A puérpera, o companheiro quando há, familiares envolvidos no caso, também passarão por esse processo.
Nos anos 2018 até 2022 foram informados ao Sistema de Informação de Mortalidade, no Brasil, 145.507 casos de óbito fetal, ou seja, quando o produto da concepção, que não apresenta sinais de vida, é extraído ou expulso do corpo da mãe com mais de 22 semanas, 500 gramas ou 25 centímetros. Quase 30 mil por ano. Vamos imaginar cada óbito desses desencadeando um inquérito policial e seus desdobramentos. Pensemos no transtorno para os hospitais e maternidades, tendo que lidar com frequentes desfalques na sua escala médica, de enfermagem e demais profissionais de saúde, afastados por conta desses inquéritos. Quantos profissionais de saúde experientes deixarão suas funções para se preservar de processos criminais! Quantos hospitais e clínicas particulares irão cobrar bem mais caro pelo cuidado, prevendo os custos com advogados e o desgaste emocional e profissional? Quanto de efetivo da polícia civil será necessário para dar conta desse incremento no número de inquéritos? Quanto de efetivo em termos de Ministério Público, Defensoria Pública e Juízes? As mulheres, emocionalmente abaladas por uma perda, saindo direto do hospital para a prisão? Ou algemadas no leito de hospital, rodeadas de policiais, até provar que focinho de porco não é tomada? Médicos deixarão de executar procedimentos de interrupção da gravidez em casos graves, aumentando a Taxa Mortalidade Materna, que em nosso país é absurdamente alta, por medo da persecução penal.
E, finalmente, vamos falar do componente racista e aporofóbico deste projeto de lei. Meninas menores de 13 anos, esmagadoramente pobres e negras, oriundas de famílias desestruturadas, que sofrem abuso sexual sistemático durante anos, em geral perpetrado por pessoas muito próximas, como pai, padrasto, irmão, primo, tio, avô, vizinho, e que em geral a violência só é revelada no momento que se descobre que a menina está grávida. Muito raramente esses casos são denunciados por familiares. Em sua maioria, a suspeita da violência sexual é feita na escola ou em serviços de saúde. Em geral, em pequenos municípios, com acesso dificílimo aos centros onde efetivamente se realiza interrupção da gestação prevista em lei (em 2016 eram somente 37 no país todo). Essas meninas serão obrigadas a suportar uma gravidez forçada, o que é tortura, morrerão de complicações da gravidez, ou morrerão das consequências do trauma (suicídio, por exemplo), e se sobreviverem irão passar por internação em centros sócio-educativos, que mantém a logica prisional de fábrica de criminosos. Conclamo a todos os profissionais de saúde sérios a tomar uma atitude urgente em defesa da vida e saúde das mulheres e meninas e do próprio exercício da obstetrícia, que se vê ameaçado por um grupo de parlamentares cujos objetivos não têm nada a ver com a vida.
Enfermeira, especialista e mestra em Saúde Pública, ex-presidente da ABEn-TO diretoria provisória 2019-2020 e 2020-2022, membro da Casa 8 de Março, da Articulação de Mulheres Brasileiras - Tocantins, da ANEPS e da ABRASCO.
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